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Primeira terapia gênica para o tratamento da talassemia beta aprovada nos EUA
O FDA (Food and Drug Administration) aprovou em 17 de agosto de 2022 betibeglogene autotemcel, a primeira terapia gênica celular para o tratamento de pacientes adultos e pediátricos com talassemia beta com necessidade de suporte transfusional frequente. Trata-se de uma população celular autóloga geneticamente modificada enriquecida com células CD34+, que contém células tronco hematopoiéticas transduzidas com vetor lentiviral codificando o gene βA-T87Q-globina.
A eficácia de betibeglogene autotemcel está sendo avaliada em dois estudos de fase III de braço único com 41 pacientes entre 4 e 34 anos. Foram considerados elegíveis pacientes com histórico transfusional ≥ 100 mL/kg/ano de concentrados de hemácias ou ≥ 8 concentrados por ano nos últimos 2 anos. Pacientes com deposição excessivamente alta de ferro no coração (avaliada por ressonância magnética) ou com doença hepática avançada foram excluídos dos estudos. Os pacientes foram submetidos a um protocolo de mobilização com estimulador de colônia de granulócitos e plerixafor, na sequência receberam protocolo de condicionamento mieloablativo completo com busulfan e então receberam o tratamento com betibeglogene autotemcel. Devido se tratar de uma terapia autóloga, o uso de imunossupressores por longa duração não foi necessária nos estudos.
No primeiro estudo (NCT02906202), após um seguimento mediano de 29,5 meses, não houve mortes dentre os 23 pacientes incluídos. A taxa de independência de transfusão (IT), caracterizada como hemoglobina sérica ≥ 9 g/dL sem necessidade transfusional por ≥ 12 meses, foi 91% entre os 22 pacientes avaliáveis, com hemoglobina sérica média de 11,8 g/dL e manutenção de IT em todos os pacientes que atingiram este desfecho. Dentre os 2 pacientes que não alcançaram IT, a redução da necessidade transfusional foi de ao menos 26% após a infusão do tratamento. No segundo estudo (NCT03207009), 18 pacientes foram incluídos com um seguimento mediano de 24,6 meses, também sem a ocorrência de mortes. A taxa de IT foi 86%, com hemoglobina sérica média de 10,2 g/dL e o benefício também foi mantido em todos os pacientes que atingiram o desfecho.
Os eventos adversos mais frequentes associados ao tratamento foram citopenias, mucosite, neutropenia febril, vômitos, febre, alopecia, epistaxe, dor abdominal, dor musculoesquelética, tosse, cefaleia, diarreia, rash cutâneo, constipação, náuseas, redução do apetite, alterações de pigmentação e prurido.
Como destacado pelo Dr. Phillip Scheinberg, chefe da divisão de Hematologia Clínica da BP, a Beneficência Portuguesa de São Paulo, “o betibeglogene autotemcel é uma terapia gênica para uma doença monogênica, a beta talassemia, onde a mutação no gene HBB leva à redução da hemoglobina nas hemácias e, consequentemente, a sintomas relacionados a anemia. Na sua forma mais grave – major – os sintomas aparecem na infância, havendo repercussões no crescimento e desenvolvimento das crianças. O transplante de medula óssea alogênico tem sido proposto como uma modalidade de terapia para ‘corrigir’ as células mutadas, substituindo a medula do próprio paciente por uma sadia, sem a mutação. Contudo, as toxicidades do transplante de medula alogênico, imunossupressão, infecções e doença do enxerto-versus-hospedeiro limitam essa modalidade de tratamento.
A décadas, a possibilidade de corrigir a célula mutada através da terapia gênica vem sendo tópico de estudos nas anemias hereditárias, como a anemia falciforme e beta talassemia. Porém, um dos principais riscos decorrentes dessa manipulação é o aparecimento de leucemias, provavelmente por conta do local de inserção através de um vetor no genoma das células progenitoras medulares. Esta complicação retardou em muito o desenvolvimento dessa tecnologia. Contudo, esses estudos iniciais mostraram que essa correção gênica era possível e a produção de hemácias corrigida em vários casos.
A aprovação do betibeglogene autotemcel se dá com base em 2 estudos que mostraram eficácia em aproximadamente 40 pacientes. O tratamento inclui células autólogas do paciente que são corrigidas através da terapia gênica que são devolvidas ao paciente. As toxicidades foram aceitáveis e, até agora, não foram reportados casos de malignidade nestes estudos. Contudo, vale lembrar que o número de pacientes é relativamente pequeno e com um seguimento relativamente curto. Também merece destaque que abordagens similares em anemia hereditárias até recentemente tiveram que ser abortadas por conta de casos de neoplasias mieloides secundárias. Esperamos que com essa aprovação e o maior uso do betibeglogene autotemcel, não sejam observadas complicação desta natureza. Porém, a farmacovigilância será fundamental para o melhor entendimento desse potencial risco.”
Por Dr. Daniel Vargas P. de Almeida